Certa vez, disse Saramago sobre a angústia de pertencer a tudo, mas não caber em lugar algum. Eu entendia bem desse sentimento, com a diferença de que, no meu caso, eu sequer pertencia a algum lugar.
Saí de casa sem porquê, com destino a sabe se lá onde.
Acabei dando por mim no shopping mais próximo à minha casa. Tenho pra mim que, shopping, as pessoas procuram por duas razões: por carecerem de um motivo mais nobre pra viver e pelo ar condicionado em dias quentes. Eu, logicamente, estava ali por ambos.
Entrei numa loja aleatória. Dirige-me sozinha às araras do setor direito mais ao fundo. Engraçado o dom que os vendedores têm de discernir entre quem entra convicto de comprar e quem tá lá só passando o tempo. Se bem que uns tantos já me alertaram que, na vida real, não era exatamente assim que as coisas funcionavam. Devia ser, então, por culpa da minha cara de poucos amigos, ou de desolação com a vida, ou de "pérrapada"; ou, ainda, de todas elas juntas. O fato era que ninguém me incomodava e eu podia, assim, deleitar-me no ar fresco da loja por quanto tempo quisesse e pudesse sobreviver àquele ambiente planejado e organizado e dividido por cores e tamanhos e estilos.
Peguei meia dúzia de peças e fui ao provador. Fechei a cortina atrás das minhas costas e me preparei para um dos meus momentos preferidos na vida: quando estamos sozinhos dentro daquele cubículo, cuja iluminação faz a gente se sentir mais perto de ser alguém na vida. Penso que esta é um dos artifícios mais ardilosos da publicidade: totalmente enganosa. As roupas nunca ficam tão bonitas fora dali e a gente chega nem perto de parecer tão gostosa quanto lá dentro. De todo modo, era boa a sensação de estar ali. Por me sentir mais bonita, claro, mas também por pensar que as pessoas ali fora e no cubículo ao lado não faziam ideia do show que eu dava lá dentro. Experimentei cada peça com a ânsia e o alívio de quem nunca mais vai usar nenhuma delas. Fiz pose de modelo. Empinei a bunda e desci o decote. Desejei-me. Pedi-me em namoro só pra poder me dar, eu mesma, um grande fora. Eu ria e chegava até a pensar que aquele lugarzinho insignificante e escondido fosse, enfim, o meu lugar. Ademais, eu devo dizer, usufruir de alguns minutos de diversão gratuita no antro do capitalismo era algo que fazia muito bem pro meu eu rebelde reprimido.
Mas eis que a vida havia de seguir para além daquelas cortinas e eu havia de voltar à programação normal do look cotidiano. Olhei-me no espelho e a menina que me olhava de volta usava meia com chinelo, uma calça nada a ver com a blusa, cabelo despenteado e tinhas as unhas por fazer. Essa era tão mais eu do que todas as versões anteriores; tão desajeitadamente eu.
Saí. Não satisfeita, mas conformada de ser só quem eu era. Senti da cabine ao lado, um olhar fixo que me acompanhou desde meu primeiro passo além daquele mundo oculto. Há quanto tempo estaria ali imaginando quem devia estar lá dentro? Olhei de relance e vi que as roupas dele também não faziam o menor sentido. Mas era bonito o modo disforme como ele se vestia. E era elegante o modo perplexo sem ser invasivo com que me olhava.
Continuei andando e deixei as roupas sobre o balcão na saída. Virei-me a olhar mais uma vez aquele olhar curioso que me rondava. Talvez ele também estivesse ali procurando um pouco de rebeldia dentro da cabine do provador. Talvez ele soubesse exatamente o que eu fazia lá dentro e, então, sem que nos déssemos conta, éramos cúmplices no mesmo crime de experimentar de tudo sem nos comprometermos com nada. Talvez ele estivesse tão somente buscando pertencer a algum lugar, assim como eu.
E foi com esse pensamento que me apaixonei por ele, da saída da loja à saída do shopping. Para além disso, era exagero gastar tempo com paixões, quando eu precisava de tanto tempo pra tentar caber em tantas coisas e, sobretudo, pra lidar com eterna angústia de não pertencer a nenhum delas.
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